domingo, junho 26, 2005

Metade

Que a força do medo que tenho
não me impeça de ver o que anseio
que a morte de tudo em que acredito
não me tape os ouvidos e a boca
pois metade de mim é o que eu grito
a outra metade é silêncio.

Que a música que ouço ao longe
seja linda ainda que tristeza
que a mulher que amo seja pra sempre amada
mesmo que distante
pois metade de mim é partida
a outra metade é saudade.

Que as palavras que falo
não sejam ouvidas como prece nem repetidas com fervor
apenas respeitadas como a única coisa
que resta a um homem inundado de sentimentos
pois metade de mim é o que ouço
a outra metade é o que calo.

Que a minha vontade de ir embora
se transforme na calma e paz que mereço
que a tensão que me corrói por dentro
seja um dia recompensada
porque metade de mim é o que penso
a outra metade um vulcão.

Que o medo da solidão se afaste
e o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável
que o espelho reflita meu rosto num doce sorriso
que me lembro ter dado na infância
pois metade de mim é a lembrança do que fui
a outra metade não sei.

Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
pra me fazer aquietar o espírito
e que o seu silêncio me fale cada vez mais
pois metade de mim é abrigo
a outra metade é cansaço.

Que a arte me aponte uma resposta
mesmo que ela mesma não saiba
e que ninguém a tente complicar
pois é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
pois metade de mim é platéia
a outra metade é canção.

Que a minha loucura seja perdoada
pois metade de mim é amor
e a outra metade também.

Oswaldo Montenegro

sábado, junho 25, 2005


longe Posted by Hello
Moro tão longe, que as serpentes morrem no meio do caminho.
Moro bem longe: quem me alcança para sempre me alcançará.

Não há estradas coletivas com seus vetores, suas setas indicando o lugar perdido onde meu sonho se instalou.

Há tão somente o mesmo túnel de brasas que antes percorri, e que à medida que avançava
foi-se fechando atrás de mim.

É preciso ser companheiro do Tempo e mergulhar na Terra, e segurar a minha mão e não ter medo de perder.

Nada será fácil: as escadas não serão o fim da viagem: mas darão o duro direito de, subindo-as, permanecermos.

Alberto da Cunha Melo

quarta-feira, junho 15, 2005


A flor Posted by Hello
A Flor e a Fonte

"Deixa-me, fonte!" Dizia
A flor, tonta de terror.
E a fonte, sonora e fria,
Cantava, levando a flor.

"Deixa-me, deixa-me, fonte!"
Dizia a flor a chorar:
"Eu fui nascida no monte...
"Não me leves para o mar".

E a fonte, rápida e fria,
Com um sussurro zombador,
Por sobre a areia corria,
Corria levando a flor.

"Ai, balanços do meu galho,
"Balanços do berço meu;
"Ai, claras gotas de orvalho
"Caídas do azul do céu!...
Chorava a flor, e gemia,
Branca, branca de terror,
E a fonte, sonora e fria
Rolava levando a flor.

"Adeus, sombra das ramadas,
"Cantigas do rouxinol;
"Ai, festa das madrugadas,
"Doçuras do pôr do sol;
"Carícia das brisas leves
"Que abrem rasgões de luar...

"Fonte, fonte, não me leves,
"Não me leves para o mar!..."
As correntezas da vida
E os restos do meu amor
Resvalam numa descida
Como a da fonte e da flor...

Vicente de Carvalho

terça-feira, junho 14, 2005

sábado, junho 11, 2005

Palavras (Words)

Golpes,
De machado na madeira,
E os ecos!
Ecos que partem
A galope.

A seiva
Jorra como pranto, como
Água lutando
Para repor seu espelho
sobre a rocha

Que cai e rola,
Crânio branco
Comido pelas ervas.
Anos depois, na estrada,
Encontro

Essas palavras secas e sem rédeas,
Bater de cascos incansável.
Enquanto
Do fundo do poço,
estrelas fixas
Decidem uma vida.

Sylvia Plath

s� Posted by Hello
Ariel

Êxtase no escuro,
E um fluir azul sem substância
De penhasco e distâncias.

Leoa de Deus,
Nos tornamos uma,
Eixo de calcanhares e joelhos! – O sulco

Fende e passa, irmã do
Arco castanho
Do pescoço que não posso abraçar,

Olhinegra
Bagas cospem escuras
Iscas –

Goles de sangue negro e doce,
Sombras.
Algo mais

Me arrasta pelos ares –
Coxas, pêlos;
Escamas de meus calcanhares.

Godiva
Branca, me descasco –
Mãos secas, secas asperezas.

E agora
Espumo com o trigo, reflexo de mares.
O grito da criança

Escorre pelo muro
E eu
Sou flecha,

Orvalho que avança,
Suicida, e de uma vez se lança
Contra o olho

Vermelho, fornalha da manhã.

Sylvia Plath Tradução de Rodrigo G. Lopes e Maurício A. Mendonça

almas Posted by Hello

sábado, junho 04, 2005

Não sei quantas almas tenho.

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo : "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.

Alberto Caeiro